Por Antônio Lima Júnior, diretor da Associação Cearense de Imprensa (ACI) e sócio da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine)
O Cineteatro São Luiz está exibindo a Mostra Filmes Finalistas do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, com as principais obras que estão disputando as categorias da 22ª edição. Nesta sexta-feira (18), exibirá às 14h o filme A Jangada de Welles, dos cearenses Firmino Holanda e Petrus Cariry. A obra conta a nada inédita história sobre a vinda de Orson Welles ao Brasil, em 1942, para filmar o inconcluso ‘É Tudo Verdade’, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.
A vinda de Welles ao Brasil foi fruto da política de boa vizinhança dos EUA, buscando estreitar laços com a ditadura varguista para que esta entrasse na Segunda Guerra Mundial junto aos Aliados, quando Vargas era próximo das experiências nazi-fascistas. Welles, na época em grande projeção pelo sucesso de Cidadão Kane, fora convocado para, com um milhão de dólares no bolso, fazer um filme sobre o Brasil.
A trama já foi explorada anteriormente pelo cineasta Rogério Sganzerla na sua trilogia ‘Nem tudo é verdade’ (1986), ‘A linguagem de Orson Welles’ (1990) e ‘Tudo é Brasil’ (1997). O grande diferencial aqui é o recorte sobre o episódio dos jangadeiros, completando os dois episódios que Welles veio gravar no país, sendo o outro sobre o carnaval do Rio de Janeiro. O caso dos jangadeiros fala sobre os quatro cearenses que foram de jangada ate o Rio de Janeiro exigir melhorias para a categoria, algo que surpreendeu Welles e o fez gravar um filme sobre a história. Infelizmente, a tragédia da morte de um dos jangadeiros, Manoel Jacaré, contribuiu para o conjunto de fatalidades que desembocaram para a não conclusão do filme.
Ao optar pela dedicação no episódio dos jangadeiros, o filme explora um contexto de luta social daquela categoria tão marginalizada, cujas reivindicações foram tiradas de cena no contexto da ditadura varguista, exaltando o ‘patriotismo’ dos quatro jangadeiros. O episódio, na verdade e em especial na figura da liderança de Manoel Jacaré, é um verdadeiro exemplo do processo de consciência de classe, onde os pescadores se descobrem como aqueles que vendem sua força de trabalho e por isso são explorados. Assim, buscam lutar por melhorias e a trajetória de Jacaré, mesmo com seu fim trágico, mostra o exemplo de quem buscou se organizar contra a exploração.
Legado também é o de Orson Welles, cujo interesse em registrar o episódio mostra que o esforço dos quatro jangadeiros não foi em vão. Welles na verdade contribui duplamente, tanto para as lutas sociais quanto para o cinema brasileiro, onde aqueles que trabalharam com Welles, conforme apresenta o documentário, levaram aprendizados para a continuidade de seus trabalhos. Para conseguir os melhores ângulos, Welles cavava um buraco na areia das praias cearenses, mostrando seu profissionalismo de improviso para garantir o melhor do cinema. Quando vemos a primazia com que Welles preparava um elenco não profissional durante o episódio no Ceará, é impossível não lembrar do trabalho de Glauber Rocha comandando os sertanejos em ‘Deus e o diabo’ e em ‘O dragão da maldade’, tampouco não lembrar do trabalho de escavador da história, feito por Rogério Sganzerla, na sua trilogia já citada.
O legado do episódio para as lutas sociais é apresentado ao vermos que outros jangadeiros continuaram ‘marchando’ pelas águas rumo aos seus direitos durante as décadas seguintes, até chegarmos no ano de 2001, onde a região do Vicente Pizón, bairro onde os pescadores tradicionalmente moravam, foi palco de despejos violentos por parte da Prefeitura de Fortaleza e da Polícia Militar, atendendo aos interesses da especulação imobiliária.
O documentário apresenta grande qualidade na sua montagem, mostrando um trabalho primoroso na sua pesquisa, ao inserir músicas, cinejornais e jornais da época, entrevistas antigas de pessoas que conviveram com Welles no episódio, bem como recortes dos filmes de Sganzerla. A Jangada de Welles é uma verdadeira homenagem ao diretor, apresentando seu jeito debochado e visionário de fazer cinema, para horror das autoridades da época, esquecidas pelo diretor enquanto este preferia tomar cachaça com Grande Otelo.