Salomão de Castro Diretor de Atividades Sociais e Culturais da ACI
“Perdida na avenida
Canta seu enredo fora do carnaval
Perdeu a saia
Perdeu o emprego, desfila natural”
Em breve momento de leveza de “Medida Provisória”, filme que marca a estreia do ator Lázaro Ramos como diretor, a médica Capitú (Taís Araújo) rodopia e cantarola ao som de “Dura na Queda”, canção de Chico Buarque eternizada na voz de Elza Soares. Junto ao marido, o advogado Antonio (Alfred Enoch) e ao amigo do casal, o jornalista André (Seu Jorge), Capitú experimenta rara afetividade em um futuro distópico, em que as pessoas com “melanina acentuada” (negros) serão (inicialmente) estimulados pelo Governo Federal a deixar o Brasil para se dirigirem a países africanos.
Adaptado da peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação (que também integra o elenco), o filme traz um futuro em que o Poder Executivo decreta a Medida Provisória nesse sentido (sugestivamente, MP 1888), tendo como justificativa a reparação aos negros pelo passado escravocrata do Brasil.
São muitos os pontos altos do filme, cujos bastidores renderiam um outro roteiro. Por desagradar a apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, o projeto sofreu atrasos consecutivos por parte da Agência Nacional do Cinema (Ancine) entre 2020 e 2021, vindo a estrear apenas em 2022. A espera foi compensada: trata-se da segunda maior bilheteria nacional do ano passado, com 408 mil espectadores.
Ficção ou realidade?
Em um diálogo com a obra do sociólogo Jessé Souza, “Medida Provisória” remete ao conceito de “Ralé brasileira” desenvolvido pelo autor, que diagnosticou com profundidade, no livro de título homônimo e também em outra obra (“Subcidadania brasileira”) as raízes do racismo em nosso País. Mas, se ao intelectual coube a investigação percuciente das origens do racismo à brasileira, o cineasta se encarregou de projetar as consequências desse racismo e de como um governo autoritário pode institucionalizá-lo mais profundamente.
Quando Jessé, em um trecho marcante de “A Ralé Brasileira”, alude ao assassinato de Isabella Nardoni, então com cinco anos de idade, em 2008, jogada pela janela do sexto andar do prédio em que residia pelo pai e madrasta, ele nos provoca a incômoda reflexão sobre a diferenciação possível entre as tragédias da classe média e as da “ralé”: “Uma menina pobre jogada pelo pai pela janela um dia depois de Isabella só foi anunciada pela TV pela comparação óbvia com o caso de Isabella. As notícias da “ralé”, de resto, ficam nas páginas de dentro do jornal, não têm fotos e apresentam apenas números: ´sete pessoas morreram ontem em tiroteio no Morro da Mangueira’”, compara Jessé em sua obra seminal.
A apreciação de “Medida Provisória” é mais efetiva quanto menos se conhecer a sinopse. Um exercício interessante para quem decidir assisti-lo é o de se questionar se um governo totalitário pode chegar a executar ações como as empregadas no filme. Ou, por outro lado: até que ponto seríamos, enquanto sociedade, capazes de aceitar medidas abusivas? E ainda: se aplicada, a tal Medida Provisória do título teria considerável apoio entre segmentos da sociedade?
Com elenco em estado de graça e grande aparato técnico (em especial, trilha sonora, montagem, fotografia e desenho de produção), o filme acerta na maior parte de suas escolhas. Em duas situações pontuais, o diretor estreante, no entanto, faz escolhas óbvias que remetem ao já clássico “Cidade de Deus” (2002) – porém, sem os mesmos resultados do longa-metragem de Fernando Meirelles e Kátia Lund.
No dia 23 de agosto, “Medida Provisória” chega ao Grande Prêmio de Cinema Brasileiro como o filme mais indicado da edição, tendo alcançado 15 indicações, dentre as quais as de melhor longa-metragem de ficção e melhor primeira direção de longa-metragem (Lázaro Ramos). Seja qual for o resultado, a equipe do filme já tem muito a comemorar. De preferência, ao som do refrão de “Dura na Queda”:
“O sol ensolarará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol,a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas”
Serviço: “Medida Provisória” (Brasil, 2020). Direção: Lázaro Ramos. Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Emicida, Renata Sorrah. Duração: 1h34min. Disponível no streaming (Globoplay, YouTube, Apple TV, Amazon Prime Vídeo). Será exibido gratuitamente no Cineteatro São Luiz neste sábado (19/08), às 16h30min, encerrando a mostra de filmes concorrentes ao Grande Prêmio de Cinema Brasileiro 2023.